A doença rara que faz as pessoas não sentirem mais medo

  • 05/10/2025
(Foto: Reprodução)
Como será ter uma vida sem sentir medo? Getty Images via BBC Imagine como seria pular de um avião e não sentir nada. Nenhuma descarga de adrenalina, nenhuma alteração dos seus batimentos cardíacos. Esta é a realidade para o britânico Jordy Cernik. Ele teve suas glândulas adrenais retiradas, para reduzir a ansiedade causada pela síndrome de Cushing, uma doença rara que ocorre quando as glândulas adrenais produzem muito cortisol, o hormônio do estresse. Mas o tratamento funcionou bem demais. Cernik deixou de sentir ansiedade, mas havia algo de errado. Em 2012, durante uma viagem para a Disneylândia, nos Estados Unidos, ele percebeu que não sentia medo ao andar de montanha-russa. Ele pulou de um avião nos céus, andou de tirolesa em Newcastle, no Reino Unido, e desceu de rapel o edifício Shard, em Londres. E não sentiu a menor alteração do seu pulso. A experiência de Cernik é rara, mas não ele não é o único. Esta sensação pode parecer familiar para pessoas que sofrem da doença de Urbach-Wiethe, também conhecida como lipoidoproteinose — uma condição genética tão rara que, até hoje, só foi diagnosticada em cerca de 400 pessoas. Uma famosa paciente de Urbach-Wieth, conhecida como S.M., foi objeto de estudos científicos na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, desde meados dos anos 1980. No início dos anos 2000, um estudante de graduação entrou para a equipe de pesquisa e começou a procurar formas de assustar S.M. Seu nome era Justin Feinstein. Hoje, ele é neuropsicólogo clínico do Coletivo de Pesquisa Float, que promove a terapia de estímulo ambiental reduzido por flutuação (Rest, na sigla em inglês) como tratamento para dores, estresse, ansiedade e condições relacionadas. O estudo das pessoas com amígdalas lesionadas mostra que nem todo medo é igual. Nossa reação às ameaças externas percebidas faz parte do nosso instinto de sobrevivência Getty Images "Nós mostramos a ela todos os filmes de terror que conseguimos encontrar", relembra Feinstein. Mas nem "A Bruxa de Blair" (1999), "Aracnofobia" (1990), "O Iluminado" (1980) e "O Silêncio dos Inocentes" (1991) despertaram qualquer tipo de medo em S.M. Nem mesmo uma visita ao Sanatório Waverly Hills, uma assustadora casa mal assombrada em Louisville, no Estado americano de Kentucky, teve algum efeito. "Nós a expusemos a ameaças da vida real, como cobras e aranhas", relembra Feinstein. "Não só ela demonstrou pronunciada ausência de medo, como não conseguia deixar de se aproximar delas. Ela tinha essa curiosidade quase irresistível de querer tocar e interagir com as diferentes criaturas." A doença de Urbach-Wiethe é causada por uma mutação isolada no gene ECM1, encontrado no cromossomo 1. ECM1 é uma das muitas proteínas fundamentais para a manutenção da matriz extracelular (ECM), uma rede de apoio que mantém as células e tecidos no lugar. Quando a ECM1 é danificada, começa a ocorrer acúmulo de cálcio e colágeno, causando a morte das células. Uma parte do corpo que parece ser particularmente vulnerável a este processo é a amígdala cerebelosa, uma região do cérebro em forma de amêndoa. Acredita-se há muito tempo que ela participe do processamento do medo. Dificuldade de perceber ameaças No caso de S.M., ela parou de sentir medo quando a doença de Urbach-Wiethe destruiu a sua amígdala. "O impressionante é que [o efeito] é específico para o medo", explica Feinstein. "Sua capacidade de processar outros tipos de emoções, em sua maioria, permanece intacta, seja alegria, raiva ou tristeza." Mas esta história, na verdade, é mais complicada do que parece. A amígdala pode desempenhar papel mais importante em certos tipos de medo do que em outros. Ela parece ser fundamental, por exemplo, para o condicionamento ao medo. Experimentos com roedores demonstram que os animais que sofrem choque elétrico imediatamente após um ruído aprendem a ficar congelados quando ouvem o ruído isoladamente. Mas, embora S.M. saiba que não deve tocar em uma assadeira quente que acabou de sair do forno, ela não consegue ser condicionada ao medo. Ou seja, ela não sofre aceleração dos batimentos cardíacos, nem surtos de adrenalina, quando apresentada a estímulos anteriormente associados à dor. S.M. também é incapaz de reconhecer as expressões faciais de medo de outras pessoas, embora possa detectar expressões de alegria e tristeza. Ela também é extremamente sociável, mas, paralelamente, tem dificuldade para reconhecer e evitar situações perigosas. Isso a levou a sofrer ameaças com faca e arma de fogo, em mais de uma ocasião. Frequentemente nos sentimos no limite quando somos abordados muito de perto. Mas as pessoas com amígdalas lesionadas não têm esse sentimento de forma tão aguda Getty Images "Ela costuma abordar pessoas que deveria evitar e enfrentou muitos problemas, devido à sua incapacidade de sentir a confiabilidade dos indivíduos", explica Feinstein. Em um estudo, pesquisadores pediram a um estranho que se aproximasse de S.M., que sinalizou a distância à qual se sentia mais confortável. Sua distância preferida era de 34 cm, quase a metade dos demais voluntários. Isso indica que ela fica incomumente confortável com pessoas no seu espaço pessoal. "Naquela situação, S.M. e outros indivíduos com lesões das amígdalas ficarão cara a cara com pessoas relativamente desconhecidas, algo que os participantes controle saudáveis com amígdala intacta essencialmente nunca fariam", explica o professor de psicologia Alexander Shackman, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. A descoberta indica que a amígdala pode participar da organização de como nós reagimos ao mundo social. Diferentes tipos de medo Mas existem alguns tipos de medo que parecem ocorrer independentemente da amígdala. Em um experimento, Feinstein e seus colegas pediram a S.M. que inspirasse dióxido de carbono, que aciona uma sensação de medo e sufocação em algumas pessoas. Os cientistas esperavam que ela reagisse sem medo, mas, para sua surpresa, ela entrou em pânico. Dois outros pacientes com lesões da amígdala também sofreram medo intenso durante o experimento. "No caso de S.M., aquilo ocasionou um completo ataque de pânico", conta Feinstein. "Foi o medo mais intenso que ela sentiu em toda a sua vida adulta." A descoberta levou Feinstein a dedicar uma década a pesquisar a verdade sobre a função da amígdala em relação ao medo. O resultado é que existem, na verdade, dois percursos diferentes para o medo no cérebro, dependendo se a ameaça é externa ou interna. Jordy Cernik pulou de um avião em queda livre e não sentiu medo, devido à sua condição Getty Images via BBC Quando a questão são ameaças externas, a amígdala age como o maestro de uma orquestra. Ela dirige as outras partes do cérebro e do corpo para gerar uma reação. Primeiramente, ela recebe informações das áreas do cérebro que processam a visão, o olfato, o paladar e a audição. Se a amígdala detectar uma ameaça, como a aproximação de um assaltante, uma cobra ou um urso, ela envia mensagens para o hipotálamo, uma região logo acima da parte de trás do pescoço. O hipotálamo, então, se comunica com a glândula pituitária, que, por sua vez, faz com que as glândulas adrenais liberem cortisol e adrenalina na corrente sanguínea. "Isso causará o aumento dos batimentos cardíacos e da pressão sanguínea, evocando todo tipo de sintoma clássico de lutar ou fugir, de uma reação típica de medo", explica Feinstein. Mas, quando o assunto são ameaças internas, como detectar o aumento dos níveis de CO₂ no sangue, o cérebro gerencia tudo de forma diferente. O corpo interpreta o alto nível de CO₂ como sinal de sufocamento iminente, pois não há sensores de oxigênio no cérebro. As pesquisas de Feinstein demonstraram que o tronco encefálico, uma região que regula funções corporais inconscientes, como a respiração, é quem sente o aumento do CO₂ e inicia a sensação de pânico. A amígdala freia esta reação, evitando o medo. Por isso, pacientes como S.M., que não têm a amígdala, apresentam reações inesperadas — mas os cientistas ainda não sabem por que a amígdala se comporta desta forma. "É um resultado cientificamente muito significativo, pois ele nos ensina que a amígdala não é fundamental para todos os tipos e formas de medo, ansiedade e pânico", segundo Shackman. "Ela parece ser crucial para orquestrar o medo em resposta a ameaças externas, como o assaltante, a cobra, a aranha, os monstros que saem da casa mal assombrada. Mas não parece ser responsável por acionar sensações de pânico muito fortes, em resposta a esse gatilho mais interno." A importância evolutiva do medo É claro que S.M. é uma única pessoa e as descobertas científicas baseadas na experiência dela não serão necessariamente verdadeiras para todos os demais. O que é único sobre o seu caso é que sua doença destruiu quase totalmente sua amígdala, deixando outras regiões do cérebro intactas. Mas as pessoas podem reagir ao mesmo tipo de lesão cerebral de formas diferentes. Além disso, a idade em que a pessoa sofre a lesão cerebral também influencia a sua recuperação. Mas a notável história de S.M. destaca por que evoluímos para criar o medo, em primeiro lugar. Todos os vertebrados, incluindo os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, possuem amígdalas, que são claramente um enorme auxílio para a sobrevivência. "Quando você lesiona a amígdala e coloca o animal de volta no ambiente selvagem, ele normalmente irá morrer em questão de horas ou dias", explica Feinstein. "E isso ocorre porque, sem este circuito fundamental de navegação no mundo exterior, estes animais se colocam em situações perigosas." Mas a paciente S.M. conseguiu viver por mais de meio século sem a sua amígdala, mesmo sendo colocada em situações muito precárias. "Uma das questões que chamam minha atenção no caso dela é que esta emoção primária de medo, na verdade, pode não ser necessária na vida moderna", reflete Feinstein. "Ela pode fazer mais mal do que bem, especialmente nas sociedades ocidentais, onde muitas das nossas necessidades básicas de sobrevivência são atendidas, mas ainda observamos níveis de distúrbios relacionados ao estresse e à ansiedade realmente muito além dos níveis esperados."

FONTE: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2025/10/05/a-doenca-rara-que-faz-as-pessoas-nao-sentirem-mais-medo.ghtml


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